Caminhos de Santiago

Notas de reportagem de uma caminhada pelo interior das terras galegas... Sarria-Santiago de Compostela: 111 quilómetros, Setembro de 2004

09 agosto 2006

Entrevista com Xosé Barreiro Rivas

«O Caminho é uma ligação para uma Europa em busca de unidade»

Xosé Barreiro Rivas é professor catedrático na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Santiago de Compostela. Publicou, entre outras, as obras “La Función Política de los Caminos de Peregrinación en la Europa Medieval” e “The Construction of Political Space: Symbolic and Cosmological Elements (Jerusalem and Santiago in Western History)”.

Há quem diga que o interesse pelo Caminho de Santiago está a ressurgir nos dias de hoje. Concorda?

É um ressurgimento distinto, porque aquilo que hoje existe é um caminho distinto. Existe o fenómeno da Idade Média, que deu lugar a todo esse conjunto de obras de arte, de monumentos, de infra-estruturas, como portos, etc. que hoje adornam todo o Norte de Espanha.

Não há que ter dificuldade em reconhecer a multiplicidade de motivos daqueles que percorrem o Caminho. O caminho sempre teve muitos motivos. Até no Códice Calixtino, em quase todas as referências históricas que existem sobre o Caminho, nos seus melhores momentos, no século X, XI, se refere que havia pessoas que vinham por motivos religiosos, por penitência, mas também por simples curiosidade, por causa dos seus negócios, porque gostavam de romper com a monotonia da sua vida, com as mulheres e os filhos, e dar um passeio. Vinham mais homens que mulheres. Toda essa multiplicidade de motivos esteve sempre presente.

Como se justifica o surgimento do fenómeno Santiago na Idade Média?

Eu inclusivamente sustento que o fenómeno de Santiago, contado de acordo com o que diz a história das crónicas - um milagre, um apóstolo da capital de Jerusalém que aparece em Santiago, depois de nove séculos da sua decapitação e depois de seis ou sete sem que se falasse dele para nada - não seria possível sem essas outras motivações que de alguma forma ajudaram a construir o fenómeno da existência de uma terra apostólica, que era o que se procurava então. O caminho surge apoiado por redes, por comerciantes, pelo poder civil em geral que constrói hospitais, pontes, e assegura a vigilância do caminho, justamente porque este existia para cumprir um vasto leque de motivações.

A Europa é percorrida por múltiplas rotas de peregrinação…

O caminho de Santiago é o mais importante da Europa medieval, mas não é o único. Há muitos caminhos locais e regionais, e alguns muito importantes na estruturação da Europa, como Roma, e inclusive um caminho simbólico, que tinha sido durante muito tempo importante, que era Jerusalém, mas que logo deixa de ser quando no Período Bizantino se dá a queda do Império do Oriente e quando os árabes tomam uma parte importante da envolvente da Terra Santa.

É então que todas as peregrinações se voltam para Ocidente. Os caminhos nascem, do ponto de vista religioso, da ideia de que visitando o Santo se conhece melhor a sua vida e se segue melhor a sua fé. E aí procura-se o que se chamavam as hierofanias, lugares onde o contexto de alguma maneira nos transmite ou nos diz algo.

Por outro lado, surgem na perspectiva civil quando há uma fragmentação muito grande do espaço civil, quando os territórios do poder estão muito repartidos (e a lei, e a moeda) e se torna impossível percorrê-los. Daí que se dê origem a um caminho que se imponha como uma hierarquia superior, que é religiosa, para que se sobreponha sobre o mapa do espaço fracturado e permita que as gentes, ao percorrer os caminhos, com as suas mercadorias ou a sua curiosidade, tenham mais segurança.

O caminho de peregrinação pode caracterizar-se como um espaço político, quiçá económico?

No fundo, o Caminho é um espaço político. Existia no direito romano um conceito que era o de direito de peregrinação, em que os caminhos tinham um estatuto jurídico independente dos territórios por onde passavam e que permitiam cruzar espaços muito diferentes sem estar sempre condicionado aos caprichos dos poderes locais.

É esta a razão por que estes caminhos de Santiago e da Europa medieval surgem no princípio da Baixa Idade Média, num momento em que há um certo ressurgimento económico e cultural, mas no entanto um momento em que a Europa, ainda muito longe da ideia do Estado, e completamente dominada pelos poderes locais, está profundamente segmentada. O Caminho é a grande auto-estrada do Ocidente da Europa medieval.

O Caminho tem ao mesmo tempo algumas simbologias, que o favorecem muito. Surge quando uma parte da Espanha estava ocupada pelos árabes, e portanto a presença, real ou simbólica, do apóstolo Santiago aqui, mas em todo o caso acreditada pela cristandade medieval, é uma tomada de posição da terra cristã, é fazer uma ligação entre o Norte de Espanha e a cristandade ocidental.

Os árabes estavam naquela época na fronteira, e o Caminho é considerado propriedade cristã. Todos temos algo nosso e fundamental que nesse momento estava a ressurgir, que é a cristandade. O Caminho tem unido a esse feito a expressão de Finisterra. A obra de Cristo era ir até ao fim do mundo e Finisterra era vista na Idade Média como o fim do mundo, a 40 quilómetros daqui. Era de alguma maneira a perfeição do catolicismo, a universalidade. O caminho simboliza exactamente isso.

Em termos pessoais, qual é o significado?

Olhado da perspectiva da pessoa individual, é fundamentalmente uma via de penitência, mas é algo muito distinto na perspectiva colectiva, tanto eclesiástica como civil. À igreja serve para dar essa sensação de perfeição da catolicidade e de domínio do mundo, e servia para estender e reformar a Igreja Romana, num momento em que o culto romano se estendia por toda a Europa.

Ao mesmo tempo trazia infra-estruturas de comunicação de carácter geral que não reconheciam as fronteiras, com independência da fragmentação sistemática da Europa no tempo do feudalismo. O grande caminho de Santiago é um só, na minha opinião: o caminho tradicional que fizeste, que vem do centro da Europa, até ao fim do mundo. É essa a função do caminho de Santiago.

Todas as cidades têm muitos caminhos porque toda a cidade é um cruzamento de caminhos. O importante é um caminho só, que tem símbolos e uma importância objectiva para a Europa, em que surge Santiago a partir de meados do século.

A que se deve este novo interesse nos últimos anos? O número de peregrinos tem aumentado sucessivamente.

Há dois motivos fundamentais. O primeiro é que hoje em dia as pessoas têm muito mais dinheiro e muito mais capacidade de viajar. E portanto fazem muito turismo. Uns vão ver paisagens, outros vão ver animais, outros vão conhecer culturas diferentes e outros ainda fazem aquilo a que chamamos turismo religioso. Digamos que para a promoção é um momento muito bom porque as pessoas vão a todo o lado. Sobretudo à Europa Ocidental deu a febre viajeira. Toda a gente quer ir a algum sítio, e procura uma motivação para fazer essa viagem. Parece que ir apenas à praia ou comer, ou descansar, não é o suficiente.

Ir a Santiago é religar-se a uma via cultural de grande importância e de alguma maneira ligar-se a um processo histórico muito atractivo. Isso em si mesmo tem força porque o caminho mantém uma parte muito importante da sua infra-estrutura, de tal maneira que em qualquer troço do caminho que se percorra se encontram obras de arte, paisagens maravilhosas, ligando toda uma visão histórica do país e da sua formação.

A Igreja não quis perder a ideia de um caminho que nasce muito vinculado a um sentimento religioso. Vão invocar outra vez a peregrinação como se fosse um fenómeno religioso distinto. Digamos que tudo isso ajuda a que o caminho ressurja, se bem que o peregrino de hoje não tenha nada que ver com o peregrino de então, nem sequer o peregrino religioso, é distinto.

É certo que o caminho de Santiago, ao longo da história, aparece e desaparece constantemente, na Idade Média tem o seu auge, logo entra numa fase de decadência que se agudiza muitíssimo com a Reforma, para ter de novo um ressurgimento no século XVII e no XVIII, voltar a cair no século XIX, e voltar a aparecer no século XX. Há momentos especialmente propícios para que as pessoas voltem ao caminho. Desde a guerra espanhola que o caminho de Santiago tem uma relativa importância nos anos Santos.

E há dois factores que agora estão presentes: primeiro, o interesse que hoje se tem pelas culturas passadas e pelas coisas antigas. A primeira coisa a ressurgir no século XX é a arte, quando se começa a restaurar os significados religiosos e quando se começa a utilizá-los como objecto turístico. A promoção turística mais forte faz-se depois da autonomia da Galiza, a partir de 1980, e sobretudo depois de 1990. Creio que essa característica dá uma certa novidade ao processo mas não é um processo inédito. Sempre foi assim, e sempre houve motivos diversos, próprios de cada época.

E quais são os factores que actualmente favorecem este ressurgimento?

Hoje dão-se circunstâncias parecidas às que se davam quando o caminho foi criado. A Europa está em busca de unidade. Quando os europeus estão à procura de unidade - e a Europa não é um continente homogéneo, se não em cultura e em fé, é muito diversa em línguas, em história e economia - há que buscar no Caminho um reencontro, e tudo serve, desde a Liga de Futebol ao Caminho de Santiago.

Parecemos ter actualmente uma grande febre de acontecimentos europeus, de coisas que sejam de todos, porque nos dá a sensação de que voltamos a pertencer a um mesmo mundo. Interessante para os europeus é verem-se reflectidos numa ideia comum. E isso reproduz quase exactamente um dos motivos iniciais do surgimento do Caminho.

Não foi por acaso que o Conselho da Europa o declarou como a primeira rota de interesse cultural, como sempre historicamente é uma rota comum onde se encontram todos os europeus. Uma das coisas que o Códice Calixtino conta é que se ouvem todas as línguas no caminho. Chegava-se à catedral e falavam-se todas as línguas, nos confessionários as pessoas confessavam-se em inglês, em francês, em alemão… isso é um pouco o que agora está a acontecer.

Eu dou menos importância ao fenómeno religioso, não creio que suscite muita curiosidade no momento. É um fenómeno essencialmente turístico, mas é evidente que toda a gente que vem a Santiago vem à catedral e muitos vão assistir às missas e ver o Botafumeiro, mas eu creio que é uma curiosidade. As pessoas querem conhecer o Caminho de Santiago e a história dos seus castelos, das suas catedrais, das suas pontes, desde Roncesvalles, passa-se por montes elevadíssimos, quase com neve eterna. Se se for no Verão é uma coisa, no Inverno é outra, todo esse atractivo que é maravilhoso.

Mas não creio que a maior parte das pessoas se sinta peregrina. Hoje a maioria das pessoas vem de automóvel, de avião, de comboio, mas não vem caminhando. Esses que caminham são uma mínima fatia de toda a gente.

E quais são os motivos dos que caminham, que fazem centenas de quilómetros a pé?

Geralmente os que vêm andando têm motivos espirituais. Muitas vezes confessam que estão longe de ter uma motivação dentro dos parâmetros da Igreja Católica, mas em geral os que caminham sentem que estão a passar por uma crise de inquietude, de perguntas. Querem procurar respostas e ter tempo para meditar. Em todo o caso, em termos gerais, as pessoas ligam-se a um sentimento religioso de qualquer tipo, sobretudo os que fazem o caminho completo, claro, porque há muitos que fazem apenas o último troço.

Há quem comece de Roncesvalles, de Saint Port, e tenha que estar um mês a caminhar, o que será uma coisa distinta. A mim produz-me uma admiração enorme, e até uma certa emoção, quando ao viajar de automóvel pelo Norte de Espanha cruzo o Caminho e constato que continuamente há cada vez mais gente a caminhar até Santiago. Claro, uns milhares fazem o caminho todo o ano, e os que vêm nesta altura são centenas de milhares ou milhões, viajam fundamentalmente pelos meios modernos e têm uma mistura muito clara entre turismo e religião.

Há pessoas que se sentem deslocadas ao chegar finalmente à cidade. É como se viessem mais sensíveis do Caminho e a vida urbana já fosse demasiado violenta para elas.

Seria necessário fazer um estudo do que dizem as pessoas, mas para mim isso tem algum sentido, porque o que faz o Caminho sai um pouco da vida moderna e da vida ordinária, com umas botas e uma mochila. O caminho hoje em dia desvia-se das grandes estradas, das grandes vias, e quando o peregrino chega a Santiago vai encontrar-se outra vez com a civilização.

O que vem para conhecer a catedral e a tumba do apóstolo ficará satisfeito também por isso. O que venha porque teve uma experiência mais ou menos curiosa, mas não crê que o apóstolo esteja aqui sepultado ou que não tenha fé cristã, evidentemente saiu do silêncio e voltou à civilização. E Santiago é uma cidade que tem uma vida bastante intensa.

Isso acontece em todo o tipo de situações, como quando passamos uns dias numa ilha deserta, ou quando participamos numa celebração intensa, como a Semana Santa, em que quando se sai do centro histórico Sevilha passa a ser outra vez uma cidade rápida e ruidosa. Quem fez o caminho passou por montes solitários, esteve em silêncio, e isso agradou-lhe, e a sensação que tem quando chega aqui é que o paraíso acabou.

O fenómeno é muito massivo. Vai-se à missa do peregrino ver o Botafumeiro e a catedral está a abarrotar de pessoas, e é como se tudo estivesse demasiado estereotipado.

É um fenómeno turístico de massas, que contrasta com a solidão do peregrino?

Ainda que não haja tanta gente como diz a propaganda oficial, em todo o caso vem muitíssima gente, o que já obriga a um certo nível de organização. Ainda que haja que manter algumas tradições. Em todo o caso, a catedral é um recinto aberto. O Códice Calixtino diz que “estava aberta dia e noite, e que os peregrinos entravam e saíam constantemente, e que a tomavam por sua e chegavam a dormir lá dentro”.

Não é como agora que tudo tem horários, que se abrem e fecham as portas, e há lojas e há homens estátua a rodear a catedral. Suponha que a Idade Média teria um pouco de tudo isso. Há aqui um bairro a que chamam os Concheiros porque os que lá habitavam vendiam conchas aos peregrinos. Já nesse tempo as pessoas compravam lembranças.

Mas era um tempo em que quase todos os europeus eram crentes, ou pelo menos o eram com outra intensidade. Quando vou a Roma, penso muitas coisas, mas em nenhum caso tenho a sensação de que em Roma está a porta do Céu.

Agora temos outra cultura e mesmo outra maneira de viver as nossas crenças. O mundo mudou muito em dez séculos e não podemos simplesmente dizer: “agora vou abandonar o meu mundo e partir para um outro”. Os peregrinos que viajam pelo caminho cansados e famintos trazem dinheiro na carteira e um telemóvel. E um peregrino com dinheiro e um telemóvel não é o mesmo que um peregrino medieval.

Os peregrinos medievais não sabiam o que era Santiago. Os que vêm agora viram fotografias da cidade. Se têm algum problema durante o caminho podem chamar uma ambulância que os leva para o hospital. As coisas mudaram radicalmente e é impossível voltar atrás. No entanto, não se devia procurar a imagem vulgarizante do caminho, mas sim os símbolos que podem permanecer dentro da cultura actual.

Porque, de contrário, é como um teatro. Pode-se vestir um traje de peregrino, pôr um chapéu, uma vieira e uma cabaça com água e imitar o peregrino medieval. Mas o caminho não é isso. Há bares, cabines telefónicas, gente que passa de moto… já não há ninguém que regresse caminhando. Mesmo o católico mais crente não vem da mesma maneira, e apesar disso o fenómeno continua a funcionar.

Não estou de acordo com a folclorização que se está a fazer do fenómeno jacobeu. Eu preferia que fosse um fenómeno mais minoritário e mais puro. Como se fosse uma Olimpíada ou uma feira de mostras. Não faz diferença ser um milhão ou dois milhões, desde que as pessoas tenham encontrado algum motivo, a partir da sua cultura, para vir. Guardem-se as promoções turísticas para as praias e a comida.


Os dados da Oficina do Peregrino apontam para uma larga maioria de pessoas com motivações religiosas. Mas empiricamente o que parece é que há uma crescente laicização…

Se nos albergues e nos bares perguntares aos peregrinos quem são, de onde são e por que vêm, vais dar-te conta de que cada cidadão é um mundo diferente. Dizer que neste momento predomina o sentido religioso seria exagerado. Dizer que os que vêm caminhando é porque estão num momento de certa preocupação espiritual eu creio que é evidente. O número de peregrinos a pé tem vindo a aumentar, mas também tem havido um forte investimento em infra-estruturas e muita publicidade ao Caminho. Os anos santos aumentam a procura, porque há um cruzamento entre a promoção e as motivações que possas ter para responder a essa promoção. Pensa-se “porque não hei-de eu também experimentar e ver o que é isso?”. Acontece que uns estão preparados e outros não.

08 agosto 2006

A Cidade Prometida

A distância que nos separa da cidade prometida é já insignificante e aproveitamos os momentos que nos restam. «Mais dois dias e quando chegarmos acaba-se tudo», desabafa alguém, entre o alívio e a tristeza. O Monte do Gozo é esse último local magno de encontro, a escassos cinco quilómetros de Compostela. Junto à Capela de São Marcos e do monumento ao peregrino João Paulo II, descansam os cavalos, as bicicletas e os peregrinos. Savina, irmã de uma instituição religiosa de Badajoz que partiu sozinha de Sarria nessa semana, cumpriu as etapas com uma convicção heróica, e sorri vitoriosa para a fotografia de grupo, nos seus mais de 60 anos.

Daí, a descida até Santiago faz-se sem pressas. Entramos na cidade por São Lázaro, a zona onde está instalado o Palácio do Congresso e a sede da Junta da Galiza. As setas amarelas quase desaparecem. Os prédios rodeiam-nos. Cada automóvel, cada pessoa nas ruas, parece demasiado ruidoso e violento. O afã de mais um dia na cidade. Um 11 de Setembro de 2004.

Ao entrar no centro histórico, depois de percorrer uma selva urbana desconhecida, misturamo-nos com a multidão de turistas que enche as ruas, as igrejas e a catedral. Por todo o lado há filas de gente, para assistir à missa, para abraçar a imagem do apóstolo, para pedir a compostelana, o certificado para quem caminhou até Santiago “por motivos religiosos, ainda que numa atitude de busca”. As lojas estão apinhadas de t-shirts, recuerdos vários, entre os quais as vieiras e os bordões. À porta dos restaurantes, meninas sorridentes oferecem-nos a provar docinhos típicos da Galiza.

A cidade que nasceu do sepulcro do apóstolo Santiago não é o fim da caminhada. Tradicionalmente, ela só acabava em Finisterra, considerado na Idade Média como “o fim do mundo conhecido”. Vou até lá de autocarro, duas horas e meia de curvas e contracurvas. Quem diria que são só 60 quilómetros... dois dias de caminhada seriam suficientes. No promontório que se precipita sobre o Atlântico, as cinzas esvoaçam e junto aos vestígios de uma fogueira alguém deixou uma bota carbonizada. Uma pequena placa com o símbolo do luto explica o porquê: é tradição os peregrinos queimarem as roupas quando chegam a Finisterra. O sumo acto de purificação e de retorno. Vimos o mesmo laço negro do luto muitas vezes ao longo dos caminhos, sobre as cores da bandeira de Espanha, com os nomes das vítimas dos atentados do 11 de Março em Madrid.

A civilização volta a impor-se com um baque. Durante o primeiro dia, ainda é comum caminhar pelas ruas da cidade prometida e ouvir o nosso nome. Mas depois cada um regressa às suas casas, de comboio, de autocarro, ou de automóvel. Na Compostela cheia de gente, muitos peregrinos sentem-se maravilhados. Mas muitos se sentem também, pela primeira vez, sozinhos. «Já ninguém se cumprimenta. Os peregrinos mal se distinguem das outras pessoas», comenta Joana, uma portuguesa que partira uma semana antes de Ponferrada.

Percebemos, perante a beleza simétrica da grande catedral, na imensidão agitada da Praça do Obradoiro, que chegar aqui é apenas um pormenor sem o qual a peregrinação nunca teria sido feita. E que a maior beleza é sempre aquela que encontramos pelo caminho, e que cuidadosamente fomos recolhendo na mochila da alma, para o resto dos nossos dias. Porque essa, em vez de pesar, torna mais leve o nosso fardo. Não foram só as ligaduras, a sopa e o pão que partilhámos.

Amigos del Camino

Acompanho Juani, uma médica de Valência, até Melide. Juani esteve 23 dias em coma e voltou. Ninguém percebe como e entre os médicos que a acompanharam ficou conhecida como “a Ressuscitada”. «Não sei porque que estou aqui outra vez. Deve haver alguma razão para isso ter acontecido», conta a minha companheira de travessia, que já fez a peregrinação a Lurdes e pretende ir até Fátima no próximo ano.

Paco, o marido, ficou para trás. Chega um pouco mais tarde e por momentos pensamos que está prestes a desistir. Mas, no dia seguinte, à chegada a Arzua, é ele o mais espirituoso. Enérgico, não pára de contar anedotas e estórias caricatas da sua vida valenciana. Arzua é uma localidade simpática, a 37 quilómetros de Compostela, e uma das mais preservadas deste final do Caminho Francês. O próprio albergue é uma casa rural adaptada, com um espigueiro no pátio interior. Um sítio ideal para o descanso do guerreiro, para cimentar as amizades caminheiras, quem sabe em torno de uma cerveja “Estrella Galicia” bem fresquinha e de um “bocadillo” (sanduíche) inesquecível, com um bom chouriço galego ou um presunto serrano. Fala-se de Espanha, de Portugal. Ouve-se o castelhano, o inglês, o francês e o italiano, o alemão.

O som dos bordões

Em geral há um pico de desconforto, até que o Caminho nos vai dominando, apagando dúvidas e queixumes. A pouco e pouco adoptam-se as melhores estratégias de “sobrevivência”. Em Ano Santo, para encontrar dormida nos albergues da Junta, o melhor é planear etapas pequenas, com cerca de vinte quilómetros, e chegar antes da uma da tarde às localidades. É a essa hora que as portas se abrem, mas já uma fila imensa de peregrinos se estende ao longo da rua.

Há toda uma rede de negócios instalada em torno das peregrinações, e um dos mais frutuosos é o transporte de mochilas. Enquanto os caminhantes cumprem mais uma etapa, aliviados do peso dos seus pertences pessoais, uma carrinha descarrega as suas malas no albergue mais próximo. E isto pela módica quantia de três euros. As normas dos albergues da Junta dão prioridade aos peregrinos que caminham com a mochila, e os restantes, assim como os ciclistas, só têm acesso se houver vagas.

Na hora da verdade, é impossível controlar, até porque antes do albergue abrir as portas já a famosa carrinha estacionou na mesma rua e os clientes resgataram as suas malas. Se em Setembro os albergues esgotam meia hora depois de abrir as portas, imagine-se em Julho e em Agosto, a altura em que a maioria das pessoas faz o caminho.

Em Palas de Rei, uma localidade a cerca de 65 quilómetros de Santiago, foi construído este Verão um enorme pavilhão, mas apesar de estar concluído desde Julho está fechado, enquanto em frente os peregrinos rotos de cansaço dormem no pavilhão desportivo, onde os treinos de futebol só acabam às onze da noite.

A imagem é surrealista, mas verídica. Numa noite de tempestade, em Setembro, às dez horas, um grupo de jovens da localidade treinava os remates enquanto, espalhados pelo campo de jogo, duas dezenas de peregrinos tentavam dormir. Na pomposa Oficina de Informação, mesmo ali ao lado, a rapariga do atendimento limitava-se a informar que «o albergue fica no centro da povoação», quando sabia que este já não tinha camas disponíveis. Dezenas de pessoas caminharam mais um quilómetro e meio em vão, e tiveram de voltar para trás.

Todo o caminho está impregnado de magia, mas para os habitantes locais os peregrinos de bordão e vieira são apenas um elemento do quotidiano. Há muitos anos que assim é, e para muitos as peregrinações tornaram-se um bom negócio, que se estende desde os vendedores de bordões no caminho aos menus servidos nos cafés. Do lado da junta, o esforço de investimento é grande, mas muitos funcionários estão mal preparados e a informação não abunda. Mesmo em Santiago, onde os peregrinos se queixam da má sinalização e onde não se encontram mais sorrisos do que no resto do caminho.

O truque dos peregrinos de mochila é partir o mais cedo possível, e caminhar pela fresquinha da manhã. Às cinco, o movimento começa. Pé ante pé, arruma-se a mochila, faz-se os curativos e enrola-se as ligaduras nos pés, quando necessário. Um bom truque, apesar de não ser infalível: pacientemente, todas as manhãs, besuntar os pés com vaselina para evitar a formação de bolhas, as célebres “ampollas” que tanto atormentam. “Não deixes que uma bolha te pare!”, avisa o anúncio numa farmácia de Portomarín.

O som rítmico dos bordões começa a ecoar na noite, ainda antes de raiar a madrugada, e avisa da chegada dos peregrinos. Por volta das seis da manhã, descarregamos as mochilas e tomamos um “desayuno” substancial, um café com leche e umas tostadas, num café do caminho.

Essa partida solitária de Portomarín (província de Lugo, cerca de 89 km de Santiago), numa madrugada de tempestade - e depois da última noite de festa popular, em que o sono peregrino foi assaltado pelos batuques dos concertos - é recompensada por um amanhecer delicioso. As árvores emergem das suas silhuetas, os pássaros saem dos abrigos, as colinas desdobram-se numa paisagem fresca que rouba a atenção a cada passo. Quando menos se espera, um enorme corvo atravessa o ar e grasna ironicamente, como se troçasse dos caminhantes teimosos.

Tirar o impermeável da mochila e vesti-lo torna-se um gesto automático, assim como guardar a máquina fotográfica. Chove constantemente mas isso pouco importa. O peregrino navega no caminho selvagem como um marinheiro a quem as maiores tormentas não fazem enjoar. E se se partiu em jejum, saiba-se que não há melhor petisco que as amoras lavadas pelo orvalho. Ali à mão de semear, sem obrigarem sequer a estugar muito o passo. Não há barras energéticas que se lhes comparem.

"Santerreando"

(...) “Não me sinto capaz de conservar a saúde e o bom estado de espírito se não passo pelo menos quatro horas por dia “santerreando” através das florestas e por cima de morros e campos, absolutamente livre de qualquer compromisso mundano”. Lembramo-nos desse selvagem Thoreau, quando descreve as suas deambulações pela região do Lago Walden, nos Estados Unidos do século XIX. Para “selvagens” como Thoreau, andar pode ser uma necessidade espiritual extremamente forte. E raiar até a patologia, como no caso do senhor Sommer, protagonista de um livrinho de Patrick Suskind, que calcorreava a região durante o dia inteiro porque era incapaz de ficar quieto e fechado entre quatro paredes…

Já fomos nómadas por necessidade, e parece ter permanecido algo disso ao longo dos milénios. Se o acto de caminhar é para os cristãos um acto de purificação, certo é que ele está presente em qualquer religião. Jerusalém e Meca são outras dessas terras sagradas, destinos de longas peregrinações, e desde a antiga Babilónia que há registos de deslocações de massas. No hinduísmo, kshatrya é a casta dos guerreiros, mas também daqueles que partem em peregrinação, numa missão.

Kinhin é, para os budistas, o acto de “caminhar em meditação”. “Além do mais, é preciso que caminhe como um camelo, que dizem ser o único animal que rumina enquanto anda”, aconselha Thoreau no ensaio “Caminhando”, publicado logo após a morte do escritor norte-americano, em 1862. O ritmo engana o cansaço. O silêncio impõe-se, apenas entrecortado pela saudação dos outros peregrinos, a senha desta vasta família de desconhecidos. “Buen camino!”. (...)

O Caminho

“La puerta se abre a todos, enfermos y sanos. No sólo a católicos, sino también a paganos, judios, herejes, ociosos y vanos. Y, por dicirlo brevemente, a buenos y profanos.”

Frase na porta de um abrigo para peregrinos


A madrugada ainda é noite, escura como uma noite sem lua. O céu vestiu-se de tempestade e ameaça desabar a qualquer momento. Num trilho igualmente negro, subindo metodicamente/com passos mecânicos a colina, um grupo de quatro pessoas avança em direcção às nuvens negras e densas. Trazem o corpo coberto por impermeáveis que lhes escondem a identidade, e tremem com a intensidade de cada trovão. Não se conhecem, mas a força da tempestade e a escuridão da noite aproximou-as instintivamente. A tormenta que se anuncia não terá piedade, e quando a chuva desabar, mais não terão à sua volta que as árvores mudas, onde não é aconselhável que se abriguem.

De lanternas em riste, ainda mal começámos a caminhar e não sabemos onde ficará a próxima povoação. Onde de resto, a esta hora, os camponeses dormem ainda e os cafés estão fechados. A chuva precipita-se sobre nós, enfim. O impermeável precário tapa-nos a visão, com o peso da água, doem as feridas nos pés que ficaram por tratar, a mochila sempre pesada demais… é nestes momentos que podemos fraquejar e pensar: “Mas onde tinha eu a cabeça quando decidi meter-me sozinha pelos caminhos de Santiago? As doces colinas da Galiza podem ser belas, mas chove todos os dias e tudo me dói e tudo me pesa. Como poderia deter-me a ver a paisagem?”.

E é aí que, de repente, o corpo se esquece e, como que transportado para outra dimensão, limita-se a seguir mecânico em frente. As dores, o suor e o desconforto, a água da chuva que se entranha por todos os lados, os quilómetros que faltam, deixam de ocupar o espírito. “Não penses. Caminha”. Deve ser o mantra mais repetido, em voz e em pensamento, pelos milhares de pessoas que todos os anos se aventuram nos caminhos de Santiago, andando “à la pata” dezenas ou até centenas de quilómetros para chegar a Compostela.

Chegar à “cidade prometida” pode ser um objectivo cultural, ambiental ou filosófico. Ou turístico. Perfeitamente mundano até, porque é sempre, por definição, uma aventura. Mas há muito que as peregrinações deixaram de ser exclusivo da religião cristã. Tanto mais em Ano Santo, como este Xacobeo 2004, em que se pode encontrar toda a diversidade de peregrinos a pé, de bicicleta e a cavalo. 2004 foi o ano recorde em número de peregrinos. De acordo com os dados oficiais da Oficina do Peregrino em Santiago, 95 por cento das pessoas que caminham até Compostela afirmam ter algum tipo de motivação religiosa. Mesmo que não católica. Ainda assim, é de suspeitar que grande parte dos peregrinos apresente estes motivos para poder obter a Compostelana, o diploma da Igreja que prova que caminharam pelo menos 100 quilómetros até Santiago.

Pode-se partir em grupo, numa aventura partilhada, ou completamente só, aberto à partilha com aqueles que se encontrar pelo caminho. Para aqueles que partem sozinhos, “fazer o caminho” é em geral uma tentativa de se afastarem para pensar um pouco, de parar para respirar, longe do quotidiano, do trabalho, das rotinas de sempre e mesmo da família. Mesmo que não tenha um fundamento religioso, a peregrinação, tanto mais em solitário, é sempre uma experiência espiritual.

Para muitos, é um momento de paragem necessário na hora de tomar uma opção de vida, para poder avaliar o percurso que se fez até aqui e destrinçar o que é realmente importante. O padre John Columb, chileno residente em Londres, foi um desses peregrinos que mudaram de rumo depois de fazer o caminho. Encontrei-o no albergue de Ponferrada, na região de León, a uns 50 km da fronteira galega. Ao ver-me sair de mochila às costas, reparou em mim: “Estás com cara de preocupação”. “Estou com cara de primeiro dia!”, respondi resignada. Avaliou-me o peso da mochila, perguntou como estavam os meus pés, questionou-me sobre a programação das etapas e deu-me alguns conselhos para o Caminho.

Procurar conhecer pessoas. O primeiro não foi difícil de seguir. Difícil é estar sozinho. O Caminho Francês é uma corrente interminável de peregrinos. De todas as nacionalidades, mas sobretudo espanhóis, desde a Galiza às terras da Andaluzia, passando pelo País Basco e pela Catalunha. É nos caminhos de Santiago que Espanha se encontra e se reconhece, apesar de tudo, como uma nação. Era vê-los discutirem, nas merecidas horas de descanso, a actualidade política e social de cada região.

Na estação de autocarros de Ponferrada, pensava encontrar um que me levasse à aldeia de O Cebreiro, a mais de mil metros de altitude, ou até Piedrafrita, a porta de entrada da Galiza. Não encontrei um autocarro, mas em troca conheci a minha primeira companheira de jornada, uma jovem chilena que vive em Madrid e que deveria encontrar-se com os amigos em Cebreiro. Partimos juntas para Sarria, de comboio, seguindo o conselho de uma outra personagem que encontrámos na estação, o guia Félix Martin. Foi quem acompanhou Shirley Maclain e os filhos do Rei de Espanha nas suas peregrinações a Santiago. Foi também quem inspirou a personagem do guia (ver nome) no livro “Diário de um Mago”, de Paulo Coelho. A minha companheira de jornada é cristã, mas protestante. Santiago é apenas uma etapa intermédia, para quem sonha rumar até à Terra Santa de Israel, no próximo ano.

No caminho, os dias e os encontros são assim. Espontâneos e inesperados. E ainda nem começámos a caminhar. Em Sarria, encontramos os albergues todos mais que lotados. Disseram-nos que podíamos dormir no pavilhão da cidade desportiva. As luzes do recinto estão desligadas e deitamo-nos com o pôr-do-Sol. Usamos os balneários e penduramos a roupa nas balizas, para secar. Em seis dias de caminhada, apercebi-me que nesta Galiza húmida e chuvosa o truque de pendurar a roupa na mochila, enquanto se caminha, nem sempre dá resultado… o mais certo é ter de carregar roupa molhada e ficar sem nada que vestir. Nem todos os albergues têm lavadora e secadora, e naqueles em que existe a lista de espera nunca chega para toda a gente.

Metáfora da vida, no caminho há que assumir as dores, a chuva, o desconforto, a possibilidade de não ter onde dormir, os picos de cansaço e desalento. Não é um mero passeio num fim-de-semana de sol. Depois da hesitação da partida, o primeiro dia pode ser de grande cansaço ou de euforia. Quando os pés não estão já em condições de caminhar, cada metro é um suplício e os quilómetros parecem alongar-se. Aliás, é preciso que se diga, como advertência, que na Galiza os quilómetros são maiores. Ou pelo menos parecem… (...)